Fritz Haber à beira do precipício

Fritz Haber (direita) e a máquina que salvou o mundo (esquerda).


1.
No início do século XX, o mundo estava à beira do colapso. Era previsto que as reservas de fertilizantes esgotariam e a população mundial, que só crescia, precisava de comida. Como hoje, o mundo sustentava sua agricultura com fertilizantes a base de nitrogênio, fósforo e potássio. Você poderia encontrar suas únicas reservas de nitrogênio em algas, esterco de vaca e guano. Guano é uma fonte boa de nitrogênio composta por cocô de aves e morcegos. Na época, guano seria como o petróleo é hoje. Até o Chile entrou em guerra com a Bolívia e o Peru (La Guerra del Pacífico, 1879-1883) por causa de depósitos de guano. Eles digladiaram-se no Atacama e nos Andes por causa de cocô de morcego.

Era uma situação precária. O mais irônico é que existe nitrogênio em abundância ao nosso redor, em quase 78% do ar atmosférico, mas nós não conseguimos fixá-lo direto no solo. Quem faz isso são as bactérias que vivem no solo e convertem o nitrogênio em amônia (NH3) para que ele seja assimilado pelas plantas. O nitrogênio encontrado no ar (N2) é um elemento trivalente, inerte, que não reage facilmente com outros componentes. Nenhuma força conhecida na época poderia romper a ligação do nitrogênio. Mas eis que surge o químico alemão Fritz Haber.

Haber era calvo em cima, com um bigode bem aparado, óculos pince-nez e cheio de ambição. Ele começou a matutar. Ele deveria usar o ar ao seu redor, colocá-lo sob pressão. Alguns métodos anteriores foram desenvolvidos, mas eles eram ineficientes para fabricar amônia em larga escala. Haber deveria desenvolver um processo industrial, barato e eficiente. O problema é que a reação N2(g) + 3H2(g) -> 2NH3(g) libera calor. Segundo o princípio de Le Chatelier, este calor deveria ser controlado, pois encurta as taxas de reação. Por isso, o processo Haber consiste em pressionar o ar dentro de um tanque de ferro gigante, sob condições de pressão e temperatura bem específicas (200 atm e 400-450ºC) que maximizam a produção de amônia sem desperdiçar energia. Isso força o nitrogênio a formar amônia líquida e gotejar por uma torneira, pingo após pingo, após pingo, pingo, pingo…

2.
O processo Haber trazia “pão do ar”, dizia o slogan da época. Haber solucionou o problema, tornando-se um dos cientistas mais importantes do século XX. Ele recebeu o Prêmio Nobel em 1918 por “melhorar as condições da agricultura e o bem-estar da humanidade” - uma laureação controversa, pois, na mesma época, Haber era considerado um criminoso de guerra pelos Aliados. A amônia sintética era convertida em ácido nítrico para criar os explosivos que muniam o Exército Alemão na Primeira Guerra Mundial. O processo que trazia a vida, trazia a morte.

Há quem diga que Haber salvou o mundo da fome como mera consequência de sua busca por explosivos. Ele amava sua pátria e queria ajudar na guerra. Haber vinha de uma família tradicional judaica, numa época em que judeus ainda podiam ascender na sociedade alemã. Em 1911, ele foi apontado como diretor do Instituto Kaiser Wilhelm. Ao romper da Primeira Guerra, ele foi recrutado e largou tudo para comandar a divisão alemã de armas químicas. Ele propunha formas inventivas de matar soldados inimigos.

22 de Abril de 1915. O Exército Alemão deveria vencer a Batalha de Ypres para que pudesse atravessar a Bélgica e chegar na França. Era um dos cenários mais terríveis da guerra, mas todos os soldados estavam retraídos em suas trincheiras desde novembro do ano anterior. Eles tiveram uma trégua de Natal e jogaram bola juntos. Tudo estava parado, mas Fritz Haber sabia um jeito de agitar as coisas. Ele posicionou-se na linha de frente e, enquanto mastigava seu charuto, ordenou a disposição de milhares de cilindros de gás ao longo das trincheiras. Ele esperou até que o vento virasse na direção certa e abriu as comportas. Uma nuvem de cloro ergueu-se. Um muro verde de gás chegando, a um metro por segundo, suspenso na terra. A grama acinzentava, as folhas murchavam, os pássaros caíam do céu. Dentro de minutos, os soldados começaram a convulsar. Eles engasgavam e sufocavam nos fluidos dos próprios pulmãos, caiam aos milhares, tornavam-se azuis, afogavam em terra. Muco amarelo escorria de suas bocas.

Para Fritz Haber, o ataque foi um sucesso. Ele foi celebrado e promovido a capitão. Um relato anedotal diz que ele organizou uma grande festa quando voltou para casa para comemorar a vitória. No entanto, sua esposa, Clara Immerwahr estava indignada com o marido genocida. Clara também era um gênio por mérito próprio, sendo a primeira mulher a receber um doutorado de química na Alemanha. Naquela noite, os dois brigaram. Ele voltaria para o campo no próximo dia. Ela era pacifista, ativista, e estava indignada, amarga. Ele entupiu-se de sonífero para dormir. Ela pegou a pistola de Haber, saiu da casa e atirou no próprio peito. De manhã, o filho de 13 anos do casal encontrou a mãe balbuciando no jardim, quase morta. Haber levantou-se e foi para o fronte como planejado, deixando o filho e a mãe morimbunda para trás. A mãe morreu ali mesmo, nos braços do filho. Anos depois, o filho, depois de migrar para os EUA, também se mataria. De volta ao campo de batalha, Haber ainda desenvolveu o gás mostarda, que seria ainda mais letal, matando com mais certeza, por ser denso e afundar nas trincheiras.

3.
Haber era frio e terrível, mas faça o balanço. Haber salvou mais vidas do que tirou. Na verdade, talvez tenha sido a pessoa que mais salvou vidas na história, ainda que acidentalmente. O processo Haber produz hoje cerca de 450 milhões de toneladas de fertilizantes por ano. Acredita-se que, junto aos pesticidas, ele tenha quadruplicado a produtividade das terras agrícolas do mundo, o que permitiu que a população mundial crescesse de 1,6 bilhões até os 7 bilhões atuais.

Depois da Primeira Guerra, Haber terminou humilhado pelas duras sanções impostas à Alemanha, que foi culpada pela guerra e obrigada a pagar pelos reparos nos outros países. Haber buscou uma nova forma de ajudar seu país. Ele inventou de criar uma máquina que iria destilar o ouro dos mares. Com esse ouro, a Alemanha pagaria seus débitos de guerra, ele imaginou. Nem é preciso dizer que ele fracassou.

Hitler subiu ao poder em 1933 e decidiu que judeus seriam banidos dos serviços públicos. Como Haber serviu na Primeira Guerra, ele foi isento mesmo sendo judeu. No entanto, a maior parte da sua equipe de laboratório era judia e teria que ser dispensada. Mais tarde, Haber foi forçado a resignar e sair da Alemanha. Ele havia perdido sua casa, sua pátria. Ele foi exilado na Inglaterra, mas não era bem-vindo. Recusavam a apertar-lhe a mão. Ele estava à deriva e sua saúde deteriorava. Em 1934, ele resolve ir para um sanatório na Suíça. Um ataque fulmina-lhe o coração e ele morre no caminho.

Haber foi uma figura trágica quando vivo, com contribuições pós-mortem também trágicas. O instituto de Haber desenvolveu um inseticida para árvores frutíferas chamado Zyklon A, um tipo de cianeto (HCN), que recebeu um cheiro sintético para alertar cientistas a não respirar tal gás. Quando os nazistas subiram ao poder, eles alcançaram o fundo da pratilheira, encontraram o tal do Zyklon e pediram que ele fosse reformulado para tirar o cheiro. Zyklon A tornou-se Zyklon B, o gás letal usado para matar milhões de pessoas nos campos de concentração.

Membros da família de Haber morreram, amigos de Haber morreram. É terrível imaginar que ele tenha alguma ligação direta com o holocausto, mesmo quando 80% de todo o nitrogênio das nossas células, de todo o tecido humano, foram produzidos pelo Processo Haber.

Comentários

Postagens mais visitadas