À beira do Antropoceno



1.
Seres humanos têm vivido no Holoceno há cerca de 11.700 anos, desde o fim da última era do gelo quando o planeta se aqueceu, as geleiras e tundras rescindiram, os campos gramados desdobraram-se no horizonte e as florestas brotaram na porção maior do planeta. O Holoceno é considerado um período interglacial, ou seja, um período entre eras do gelo, com clima relativamente estável, em que a civilização humana se desenvolveu. Mas ele está chegando ao fim.

O impacto da humanidade na Terra agora é tão profundo que, de acordo com muitos cientistas, o amanhecer de uma nova época deve ser declarado. O Antropoceno, da palavra grega anthropos (“humano”), reconhece o ser humano como o maior agente causador das atuais transformações do planeta. A repentina aceleração na emissão de CO2, o aumento do nível do mar, a extinção em massa das espécies, a paisagem deformada pelo desflorestamento e desenvolvimento urbano; todos são sinais do início de um novo capítulo na história geológica em que nossas atividades humanas dominam o sistema planetário.

“Nós somos essencialmente a tripulação de uma grande nave espacial” diz o cientista climático Chris Rapley. ”Interferir com seu funcionamento neste nível e nesta escala é altamente significante. Se você ou eu fôssemos parte de uma tripulação de uma nave espacial menor, seria impensável interferirmos com os sistemas que nos provém ar, água, comida e controle climático.”

Se existir vida daqui a dezenas de milhares de anos, a sociedade do futuro terá que lidar com os destroços das mudanças que estamos forçando no planeta agora. Climas extremos, cidades submersas, rios secos, recursos escassos, espécies extintas, chuvas radioativas, florestas transformadas em desertos - todo cenário pós-apocalíptico parece bem real sob numa perspectiva de tempo longínquo. O problema é que imaginar o futuro dificilmente é uma atividade realista. O futuro pode ser discutido em teorias, modelos e especulações, mas ele (ainda) não existe (por definição) e não pode ser estudado diretamente pela ciência. Tudo o que temos são os rastros que o Antropoceno já deixou.


2.
Nós devemos procurar estes rastros nas rochas. Nas palavras de John McPhee, “rochas são registros de eventos que ocorreram quando elas se se formaram. Elas são livros. Elas possuem um vocabulário diferente, um alfabeto diferente, mas você pode aprender a lê-las.” Sedimentos acumulam-se uns sobre os outros com certa uniformidade e, com o passar do tempo, formam estratos rochosos que são úteis para analisarmos a taxa da acumulação sedimentar e a escala das mudanças naturais de determinado evento geológico. Para entendermos estes eventos, devemos investigar as rochas como se fôssemos detetives.

Existem diversas formas de classificar rochas. Podemos classificá-las segundo sua espessura, organizá-las num mapa conforme o tamanho de seus grãos, conforme sua quantidade de carvão, minério, petróleo, etc. Podemos organizar rochas conforme seu tempo de formação - rochas do tempo - por exemplo, todas as rochas formadas durante o Cretáceo estão contidas no Sistema Cretácico. Tudo depende da utilidade de sua classificação. Por isso, a adoção formal do Antropoceno dependerá de sua real utilidade para cientistas da terra trabalhando no Holoceno tardio. 

A estratigrafia registra eventos graduais, constantes, mas também eventos catastróficos, como enchentes, tsunamis, extinções em massa e, agora, com o Antropoceno, registrará as ruínas da civilização humana. ”Nós devemos demonstrar que o produto do Antropoceno é diferente dos outros estratos geológicos”, diz Jan Zalasiewicz, professor de geologia na Universidade de Leicester e representante do Grupo de Trabalho do Antropoceno. Podemos tratar do Antropoceno como uma época geológica formal ao considerarmos que, desde o início da Revolução Industrial, a Terra sofreu mudanças que deixarão uma assinatura estratigráfica distinta ao redor do globo. Esta assinatura é diferente das fases interglaciais anteriores - do Holoceno e do Pleistoceno - e engloba novas mudanças bióticas, sedimentares e geoquímicas mesmo em sua fase inicial, que já estabelece robustas sugestões para um limite Holoceno-Antropoceno no passado histórico recente. 

“Mas você deve remover o conceito moral disso. No registro geológico, o que importa é o efeito, não a causa”, diz Zalasiewicz. Com relação ao aquecimento global recente, por exemplo, talvez o CO2 na atmosfera seja um vestígio discreto, pois é complicado distinguir como o CO2 varia nas rochas. No entanto, existem outros vestígios que ficarão muito mais explícitos por milhões de anos, como fuligem, poluição plástica, partículas de alumínio, concreto, altos níveis de fertilizantes artificiais e ossos de galinha. Sim, ossos de galinha talvez sejam os melhores candidatos à futuros fósseis-guia, já que para cada pessoa no mundo existem três galinhas com espectativa de vida de 6-8 semanas, prontas para serem fossilizadas nos aterros e esquinas do mundo. 

Fósseis de outros animais serão excepcionais, ainda que estejamos na eminência de uma extinção em massa das espécies. Em comparação, nossos próprios restos mortais serão raros. De todo o Brasil hoje, habitado por 207 milhões de pessoas, estima-se que apenas 1/4 de esqueleto humano será deixado no registro fóssil.


3. 
No final do Cretáceo, início do Paleogeno, existe um limite geológico famoso, que marca o fim da Era Mesosoica e a extinção dos dinossauros. O limite não representa um grande cemitério de fósseis. Na verdade, notamos a extinção dos dinossauros pela disparidade na ocorrência de fósseis - pela sua abundância no Cretáceo e, de repente, ausência no Paleogeno. 

No Cretáceo, temos abundância de dinossauros, pinheiros, amonites e o surgimento recente de pássaros, abelhas polinizadoras e árvores frutíferas. No início do Paleogeno, há 66 ma atrás, um célebre meteoro cai e leva à extinção cerca de 75% de todas as espécies, incluindo todos os animais com mais de 25 kg. A extinção pode ter ocorrido como um longo inverno cataclísmico, com duração de poucos anos a milhares de anos, mas no registro geológico, este evento é representado por um instante, um único contato de rocha. Este contato apresenta picos anômalos de irídio (um elemento comum em meteoritos, mas raro na Terra), que após o impacto, dispersou-se por todo o mundo em finas camadas sedimentares. Depois do impacto, os mamíferos que sobreviveram saíram de suas tocas. Aqueles que tomaram os mares tornaram-se as baleias e golfinhos modernos. Aqueles que tomaram as árvores tornaram-se os nossos ancestrais primatas. 

O limite Cretáceo-Paleogeno (abreviado como limite K-P) não marca apenas uma mudança biótica profunda, mas também uma severa mudança climática. No Cretáceo, o clima era quente, o nível do mar era cerca de 170 metros mais alto e as calotas polares eram inexistentes. Os dinossauros habitavam as florestas temperadas do pólo sul, no sudoeste da Austrália moderna. No Paleogeno, o clima esfriou consideravelmente devido ao posicionamento da Antártica no pólo sul e a formação da Corrente Circumpolar Antártica, que gira ao redor do continente baixando as temperaturas oceânicas globais. Mudanças climáticas, por via de regra, estão associadas às mudanças paleontológicas que separam a história geológica em diferentes estágios faunais.

Agora, no Antropoceno, nós somos o meteoro.


4.

Estes contatos importantes que separam épocas geológicas, como o pico de irídio do limite K-P, são às vezes referidos como picos dourados (golden spikes). Os picos dourados possuem o nome oficial de Ponto Estratotípico Mundial (Global Boundary Stratotype Section and Point, GSSP) e são cunhados pela União Internacional de Ciências Geológicas (International Union of Geological Sciences, IUGS). Muitos nomes muito longos acompanhados por siglas exalam complicação e burocracia - mas burocracia é justamente a tarefa da Comissão Internacional de Estratigrafia (Internacional Comission on Stratigraphy, ICS), um subcomitê da IUGS, que trata da organização da Escala do Tempo Geológico (Geological Time Scale, GTS) em termos de sua nomenclatura, datas e cores padrão, a partir de dados estratigráficos e geocronológicos numa escala global. Em prática, os membros deste comitê são os guardiões do tempo.

Para que o Antropoceno figure na tabela, o Grupo de Trabalho do Antropoceno (Anthropocene Work Group, AWG) deve convencer primeiro a Subdivisão de Estratigrafia do Quaternário, composta por milhares de cientistas que trabalham com as últimas Eras do Gelo. Eles devem gostar e passar a ideia para as cadeiras e subcadeiras de todos os outros períodos, somando cerca de 20 grupos de pessoas. Só então, eles decidem e votam e a decisão ainda deve ser ratificada pela IUGS. É um processo longo, burocrácico e conservador.

“Se você parecer um grupo de resistência, você enfrentará oposição imediatamente. Você deve remover toda a retórica alarmista do seu argumento.”, diz Zalasiewicz. “Um grupo científico não pode ser um grupo de pressão. O grupo deve ser desapaixonado. [No nosso grupo], nós convidamos pessoas que são profundamente céticas da ideia de Antropoceno para que elas possam funcionar como ‘contra-prova’ ou como nossos próprios sabotadores”. 

Continua em A idade das árvores.

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